Às professoras e professores Waldorf de todo o Brasil Encaminhamos a vocês a carta, escrita a muitas mãos. Foi inspirada nas reflexões feitas nas últimas semanas por professores da Seção Pedagógica no Brasil, ante a situação atual, ímpar, que a educação Waldorf está atravessando. Pedimos que seja acolhida com interesse verdadeiro e levada a todos os colegas dos colegiados de professores a fim de ser estudada. Que essa carta não seja somente lida, e sim que possa servir como material de trabalho para os professores, atuando como apoio à realidade de cada escola onde suas asas a levarem. Desejamos que seu conteúdo apresente desafios, gere questões e possa ajudar a clarear caminhos.


São Paulo, 07 de Abril de 2020

Carta da Seção Pedagógica aos Professores Waldorf no Brasil

"Que nos una o poder do pensamento,
Já que somos obrigados a estar separados no espaço –
Que o que juntos já realizamos
Se manifeste como força por intermédio do corpo docente.
Que trace seus círculos por meio do conselho próprio,
Uma vez que aquele conselho que tanto gostaria de vir
Não tem livres suas asas".

Rudolf Steiner, 15 de março de 1925

Queridas professoras e professores,

Esperamos encontrá-los todos bem e estamos certos de que cada um está enfrentando o momento atual da melhor maneira possível, buscando compreender o período excepcional que vivemos para poder, a partir de reflexões fundamentadas, reinventar a prática pedagógica cotidiana. Somos chamados a refletir, questionar e aprofundar nossas convicções para imaginar novas formas de fortalecer nossa determinação na escolha de vida que fizemos quando decidimos ingressar na busca autêntica de nos tornarmos professores Waldorf e seguir o caminho da Antroposofia. É hora de realmente nos sentirmos todos amorosamente conectados, em um sentido profundamente humano.

O momentâneo distanciamento decorrente do isolamento social nos apartou de nossos alunos e colegas do colegiado. Estamos nos confrontando agora com as oportunidades e riscos do uso das tecnologias e mídias digitais, e com os desafios éticos que elas apresentam. O objetivo primeiro da educação Waldorf visa ancorar firmemente as crianças e jovens em si próprias e no mundo, de maneira que elas aprendam a usar as ferramentas que temos a nossa disposição a partir de quando as puderem utilizar de maneira autônoma e reflexiva.

A crise que o mundo vivencia agora chegou ao Brasil na aurora do nosso ano letivo, quando dávamos os passos iniciais para estabelecer vínculos com novos conteúdos e com as crianças, famílias e professores que sempre voltam renovados das férias. Diferentemente de outras partes do mundo, em países do hemisfério norte, onde o período letivo se encerra agora com o final da primavera, nós temos a oportunidade de vislumbrar a maior parte de nossas aulas ainda pela frente. Por esse motivo, a Seção Pedagógica no Brasil, ligada à Sociedade Antroposófica no Brasil, em parceria com a Federação das Escolas Waldorf no Brasil e apoiada pelo Fórum de Tutores das Escolas Waldorf, sentiu a necessidade de compartilhar com cada professor e cada professora de nosso país suas reflexões e ponderações.

"Qual é o método de ensino correto, no sentido da ciência espiritual?", essa pergunta feita por Rudolf Steiner é a que devemos, a cada dia, levar no coração, construindo as respostas através de nossas ações. O aprofundamento, de forma viva, na Ciência Espiritual, é a resposta para que façamos germinar e viver, dentro de nós, a verdadeira arte de educar. É preciso abrir mão dos próprios conceitos mortos e reinventá-los, vivificando-os no verdadeiro calor da alma, em verdadeiro interesse e amor.

Principalmente diante do cenário em que nos encontramos, continuar a realizar as atividades do colegiado, ainda que de forma não presencial, é onde podemos nos fortalecer, junto a nossos colegas, dedicando-nos a tecer o relacionamento que, precisamente, está prejudicado pela distância. Ajudarmo-nos mutuamente a prover forças de vida para nossos alunos e famílias, pode ser ainda mais significativo e verdadeiro. Sabemos disso, e ensinamos às crianças e jovens, desde tenra idade, que as dificuldades nos ajudam a nos fortalecer. Por isso é tão importante nos fazermos presentes para eles. Mas, como?

Nesse sentido, temos ciência de que as disciplinas escolares são dispositivos pedagógicos para chegar a algo muito mais importante. A meta fundamental sempre será: saber o que minhas queridas alunas e meus queridos alunos precisam para continuarem seu caminho de crescimento e poderem edificar o sentimento de que, como seres humanos, pertencemos ao mundo e o mundo, a nós.

Professoras e professores Waldorf dispõem de FERRAMENTAS VALIOSAS para cumprir a tarefa pedagógica. Devemos, a partir delas, elaborar e apresentar propostas de atividades significativas para as crianças e jovens.

• Conhecemos a ANTROPOLOGIA ANTROPOSÓFICA da criança e do jovem. Inspiremo-nos nesse conhecimento que nos indica o que as crianças e jovens necessitam.
• Temos o RITMO como elemento fundamental do processo de ensino-aprendizagem, que é vivo, pulsa em contração e expansão, inclui o SONO, o lembrar e o esquecer. Respiremos!
• Atuamos sobre a CONSTITUIÇÃO HUMANA integral: corpos físico, etérico, astral e eu. Lembremos da Lei Pedagógica.
• Temos uma base metodológica calcada na ESTRUTURA ANÍMICA humana: PENSAR, SENTIR e QUERER. Apoiemo-nos nela para elaborar as sugestões nesse momento adverso.
• Sabemos da importância de apoiar o desenvolvimento do ORGANISMO SENSORIAL como um todo. Busquemos lidar com a sensorialidade verdadeira.
• Temos INDICAÇÕES CURRICULARES propostas por Rudolf Steiner, cujo objetivo é apoiar o desenvolvimento da integralidade humana. Quais são as indicadas para nos apoiar no momento atual?

Como lançar mão de tais ferramentas em um momento diferenciado como o destes dias? Agora, mais do que nunca, a CAPACIDADE DE FANTASIA, a CORAGEM PARA A VERDADE e a RESPONSABILIDADE ANÍMCA são necessárias para o preparo de atividades significativas, adequadas a cada faixa etária, que precisam ser levadas às crianças e jovens.

O RITMO SAUDÁVEL entre vigília e sono, entre lembrar e esquecer, entre a atividade e a pausa são elementos básicos que precisam ser lembrados às famílias. Um fluxo vivificador é aquele que garante aos alunos a sensação de continuidade do fio anímico do aprendizado, do fio vermelho que une um dia a outro com o sentimento de que um passo foi dado adiante. Rotinas de afazeres e atividades criativas, sempre permeadas pelo ELEMENTO ARTÍSTICO, concretizam o ritmo desejado.

"A arte existe para que a realidade não nos destrua" (Nietzsche), no fazer artístico o ser humano afaga a sua alma e desperta sentimentos depositados em camadas muito profundas. Ao lidar com processos artísticos, a criança, o jovem e o adulto os trazem do fundo da alma para fora, elaborando o que, de outra maneira, faria o sentimento ressecar e solidificar.

Ante os jovens do Ensino Médio, um intensivo uso das forças de fantasia será agora ainda mais salutar e bastante benéfico. O contato individual, ainda que por telefone ou por outros meios virtuais, se mostra uma ferramenta útil nesse momento, desde que utilizada de forma balanceada. É importante que haja um equilíbrio de polaridades, incluindo atividades na natureza que são tão importantes para prover o equilíbrio com a unilateralidade técnica na Internet. E devemos ter em mente que nenhuma forma de utilização de tecnologia, de ensino à distância ou de educação remota poderá substituir a escola como espaço coletivo solidário de vivência dos estudantes, professores, pais e toda a comunidade escolar. Pois sabemos da importância do trabalho pedagógico do professor, e que esse trabalho não pode ser substituído por nenhum computador ou algum trabalho remoto, porque ele não reproduz o ambiente da escola, onde jovens e professores interagem das mais diversas e ricas formas.

A pedagogia Waldorf serve à individuação. A civilização digital traz novos desafios para a proteção da liberdade e da dignidade pessoal. A mídia moderna abre novas formas de comunicação, novas oportunidades criativas e artísticas, e atividades empreendedoras. Entretanto, a mídia moderna também levanta questões éticas e epistêmicas relativas à importância dos encontros humanos e a tantos outros aspectos. Um pendular saudável entre tais recursos e atividades ao ar livre, junto à natureza, são o que conduz o interesse do jovem para o mundo exterior.

Para o Ensino Fundamental e a Educação Infantil a situação é diferente, respeitadas as especificidades de cada faixa etária. Na educação Waldorf não é suficiente nem benéfico para as crianças receberem tarefas on-line, pois elas se conectam de forma deturpada com o organismo sensorial. Os riscos decorrentes do uso de mídia digital aumentam em proporção inversa à idade e à falta de experiência da criança. Os professores podem manter seus alunos em mente, escrever-lhes cartas e contos cultivando e alimentando o fio invisível que os une. Podem ajudar os pais, mantendo contato com eles por meio de cartas e reuniões regulares, por meio de conversas individuais, tudo isso será de grande valor. Lembremos que é ótimo o "aprender na vida", ajudando na casa. São muitas as possibilidades: quando há um jardim, é possível praticar jardinagem ou sair de outra forma para a natureza; revisitar antigos álbuns de fotografias e recordar as histórias de família; promover um sarau de música e poesia; jantares temáticos em família; concurso de culinária; trabalhos manuais, teatrinhos inventados. São algumas ideias que podem ser formas nutritivas de fortalecimento das relações familiares. Fazer uma fogueira, observar as árvores, as flores, manter um pequeno diário da natureza com desenhos que são elaborados todos os dias, não há limites para a imaginação e a criatividade. Há muitas ideias de algo que possa se encaixar às rotinas de cada família de forma salutar e harmoniosa. A autonomia nas atividades cotidianas familiares pertence à vida, e gera a prontidão necessária para quando retornarmos às atividades escolares.

É muito importante que os professores também olhem para si mesmos, cuidando da higiene psicológica e do equilíbrio mental. Que também procurem contato com a natureza, que realizem atividades artísticas e cultivem a vida meditativa. Cultivar a vida meditativa é uma ajuda importante pois, quanto mais somos induzidos a mergulhar na "sub-natureza" do infrassensorial da nova tecnologia, mais importante é a vida na chamada "supernatura", do suprassensível, dos pensamentos espirituais e, finalmente, a uma antroposofia viva. E meditar um para o outro, apoiando-nos mutuamente. Ideias de ações concretas são necessárias. Apenas uma defesa temerosa, uma rejeição ansiosa contra esse novo desafio não estaria no espírito da época de Micael. Sejamos ativos e tomemos iniciativas, reagindo a partir de uma força interior que chega até nós, todas as manhãs e todas as noites, do mundo espiritual.

Convidamos todos os professores e professoras a lerem com vagar e atenção o Memorando sobre a Educação Digital, elaborado pelo Fórum Internacional do Movimento da Pedagogia Waldorf, documento importante e útil para este momento. Ele se encontra disponível no site da Federação das Escolas Waldorf no Brasil: http://www.fewb.org.br/memorando_tecnologia.html. Indicações e exemplos de propostas criativas com base antroposófica, e também orientações governamentais atualizadas, estão disponíveis no site da FEWB.

Por fim, lembremos que cabe a nós acolher calorosamente as famílias em suas particularidades, levando em consideração que nossas propostas devem ser flexíveis, de forma a permitir que possam ser entretecidas de maneira saudável na rotina familiar. As famílias sempre foram nossas parceiras na tarefa de educar. Nós agora, precisamos mais do que nunca de seu apoio para darmos continuidade à missão educadora. O trabalho em parceria amorosa com nossos colegas professores e com os familiares de nossos alunos e alunas nos levará a atravessar corajosamente esse momento de excepcionalidade com a leveza e a sabedoria necessárias. O que ficará gravado na memória de nossas crianças não será o medo e a insegurança que esse momento possa trazer. Elas estão nos assistindo, aprendendo conosco como lidar com situações adversas e com incertezas. O que ficará marcado são as condições de resiliência que conseguirmos edificar.

Cultivemos nossa solidez na consciência da imensa tarefa que Rudolf Steiner confiou a todos nós e mantenhamo-nos unidos pelos fios suprassensíveis que nos ligam. "Quando o dia registrou verdadeiros atos, a tarde e a noite convocam o eco celeste destes atos", terça-feira Santa, por Emil Bock.

Cordialmente,
Grupo da Seção Pedagógica no Brasil

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