Uma reflexão com educadores sobre a primeira infância, o desenvolvimento humano e a virtualidade






"Viver é muito perigoso."
Já disse Guimarães Rosa, e se lembrássemos o desafio que é o nascimento talvez considerássemos o ato mais corajoso de nossa vida!
O ser humano é comparado com os animais, sem dúvida o mais dependente, não sobrevive se não tiver outro ser humano que zele por ele;
zele no sentido mais profundo da palavra, que lhe olhe com interesse e atenção. 

Eis que o recém-nascido agarrado ao seio, pele com pele, sente o calor do corpo que o sustenta, sente o ambiente cuidadoso que o cerca, desde o lençol limpinho do berço até a cortina que esvoaça com o vento que entra pela janela, nos braços que o carregam, confiante, encontra os olhos de quem o alimenta, escuta a voz que o acalenta, e se nutre. Se alimenta do leite e de tudo ao seu redor, assim cresce, assim começa a conquistar a si mesmo, seu corpo, desde a cabeça que levanta, o pescoço que se ergue, o tronco que se mexe, as pernas que agitadas encontram um rumo, um ritmo, uma cadência, a criança se ergue e conquista a verticalidade. Se lança: entre um passo e outro, um abismo, um horizonte de possibilidades, um suspense, é a busca do equilíbrio, do movimento, do ir ao encontro da vida. Os sons, os gritos, as vozes, as palavras surgem, mais chances de encontrar o outro, de se colocar, se expressar… tudo começa a se ordenar internamente, os objetos são nomeados, o que está ao redor, o mundo se revela e é possível expressá-lo: a criança pensa. Como tudo isso foi possível? Pelo outro, pela mãe que estava ali, o pai que dele cuidava, a babá, a vovó, os irmãos, familiares, amigos, os seres humanos que o cercavam, o ambiente oferecendo a base para tudo isso acontecer, sua própria essência, assim o ser humano em desenvolvimento, na sua primeira infância, imita, se apropria, se desenvolve, se torna humano. Qual ferramenta ele usou pra isso? O corpo como um todo, com todos os sentidos, o contato físico e o que emana além dele. 

Essa criança cresce, extravasa de seu quarto pela sala, pela cozinha de casa, ultrapassa o quintal da vó, o parquinho da esquina e chega em seu primeiro grande ambiente social: a escola. Novos adultos surgem em sua vida, novos colegas com suas famílias, é mais um mundo que se abre. Vínculo, encontro, tato. A criança chega grudada na mãe ou no pai, sente aquele ambiente, o toca com os olhos, cada cantinho, nada passa desapercebido. Os ouvidos se abrem, é o passarinho que canta na árvore, é a professora que entoa uma canção. Os gestos lhe tocam, o que ela vive na escola é silenciosamente incorporado, e quando menos se espera, reproduz o vivenciado quando brinca em casa, seja um gesto que a professora fez, uma cantiga, uma brincadeira. Gesto não de aula, gesto de vida mesmo, gesto mexendo a panela no fogão para o lanche ficar pronto, gesto de dobrar a toalha da mesa, gesto de costurar o botão da roupa, gesto de lavar a fruta, gesto de arrumar, de fazer, gestos que cuidam, que tem sentido, gestos de ser. Assim ela imita o mundo verdadeiro que a cerca. Qual a matéria da educação infantil? Qual o currículo? A vida. A história, a roda rítmica, o cantinho, a musiquinha: "acessórios". Lindos acessórios, porém acessórios. A essência é a verdade que vive dentro daquelas pessoas que se colocam diariamente frente à criança. É isso que a forma, muito mais do que os acessórios. Dá pra viver de acessórios? Dá, basta olhar para o mundo moderno, basta entrar no Instagram e ver a foto bonita que a pessoa postou no café, mas se o café e aquele momento teve um sentido e uma verdade, não sabemos. 

Estamos confinados em casa, tempos de reflexão. A criança pequena, ou seja, o ser humano em seu estado de desenvolvimento infantil, continua com a mesma necessidade: um ser humano digno de ser imitado à sua frente, um ambiente que o acolha em suas necessidades mais básicas de higiene e nutrição e que propicie condições para que ele se autodesenolva, o que se dá essencialmente no brincar. A criança não precisa de distração, de entretenimento, de "coisa bonitinha". (Cuidado com a frase: "mas é que ela gosta tanto!"). Isso gera esvaziamento da alma. A criança não precisa de um vídeo da professora contando história, mesmo porque a Disney e tantas outras empresas se dedicam a esse trabalho o qual, inclusive, pela perspectiva da Pedagogia Waldorf, não é indicado para a criança do primeiro setênio, ou seja, não é essa a tarefa que queremos para nós, professores da educação infantil. A criança não precisa distrair-se, pois distrair, para uma criança que está em plena formação de seu corpo físico, significa distrair-se de si mesma, distrair-se do que de mais importante está acontecendo na sua vida: seu corpo está se formando e o que for incutido nele nesses 7 primeiros anos servirá de base para toda sua vida! Queremos uma base sólida nessa fundação, e virtualidade apenas enfraquece. Além de não alimentar, gera a ilusão de alimento, levando a uma desnutrição anímica que se torna física: o corpo perde em movimentar-se de verdade, sofre a ilusão do movimento que a tela oferece, sofre a ilusão de aprender conteúdo, pois a criança só aprende por imitação e repetição aquilo que ela pode assimilar com todos os seus sentidos orgânicos vinculados diretamente a um fenômeno real, e não virtual. presencialmente diante dela. 

Temos, sim, os "acessórios Waldorf" e eles passam a ser ferramentas de trabalho plenas de sentido, e não apenas acessórios, quando são conscientemente e artisticamente manipulados pelo educador que se preparou para estar diante das crianças e fazer uso dele. Vejo minha aluna de 5 anos que imita lindamente o teatro simples da história que contei presencialmente. Ela arrumou em casa tecido, boneca, bichinhos, plantas para o "cenário", assim como eu fiz. Ela o fez porque viu o meu cenário pronto e me viu mexendo os bonecos? Ela presenciou meu coração batendo mais forte na hora de cantar a cantiga que prepara para o ambiente da história; ela presenciou o meu olhar que atentamente acompanhava os passos que a marionete dava; ela presenciou o quanto me contive para que os movimentos da marionete fossem sutis; ela presenciou o calor que emanava do meu corpo aquecido pela emoção e concentração daquele momento perante as crianças; ao final ela debruçou a cabeça no meu colo e verbalizou: você está suada, Professora! E por fim ela presenciou o olhar carinhoso, vivo e humano de uma professora que, cansada após 5 horas de uma manhã de trabalho, responde: sim querida, hoje está calor, né? E que, apesar do suor, continua deitada, sorrindo, no colo da professora. 

Nossas crianças estão nutridas, não estão sem alimento anímico, assim como nosso vínculo com elas está garantido nesse lugar mais sutil porém não menos importante e eficiente, uma vez que os professores estão sempre vinculados à criança a partir de sua imagem mental a qual ele carrega em pensamento, todas as noites, para se conectar às inspirações necessárias para atendê-la da melhor forma. Como podemos sustentar um vínculo que é espiritual? Sim, precisamos nos dar as mãos e nós, adultos, suarmos, juntos, porém à distância! A criança precisa que o conteúdo passe por outro adulto, por outro ser humano, ela não precisa ouvir as mesmas histórias pelo vídeo. Vamos nos nutrir e trocar enquanto adultos. Vamos compartilhar com os pais os nossos "acessórios" mas vamos capacitá-los para que eles também o permeiem de calor e sentido. As famílias não precisam de vídeo "tutorial", precisam ser instruídos por contato amoroso, por conversas, textos, e assim se ativarem por si. Eis a nossa chave, o nosso "segredo" pedagógico: a ativação, o interesse genuíno e verdadeiro do educador para aflorar um tema, para que ele seja tão verdadeiro dentro de si que transborde para a criança. Vamos considerar que os pais não são pedagogos, e ter a certeza de que ser capaz de ativar algo pelas próprias forças é o que mais alimentará suas crianças. Os pais não precisam parar tudo para fazer teatros, basta que vivam e encontrem sentido em suas ações fora do mundo virtual, confiando que a criança imersa nesse ambiente pleno de ações-com-sentido levará esse sentido para o seu brincar. A grande tarefa a qual a criança deve se dedicar é o brincar, pois é aí que ela processa tudo o que assimila do mundo, interiorizando-o à sua maneira. 

"Viver é muito perigoso... Porque aprender a viver é que é o viver mesmo…", continua Guimarães Rosa. Mais do que se reinventar, é tempo de darmos as mãos, de conhecermos os talentos uns dos outros, de nos ajudarmos, solidarizamo-nos, aceitarmos também que estamos convidados a viver um tempo de pausa, de recolhimento, de olhar para dentro. Não nos deixemos capturar pelo vírus do conteudismo como já se diz por aí, pois esse vírus tem feito professores adoecerem, tem feito professores irem contra seus ideais e princípios, e essa doença não precisamos viver. É tempo de afirmarmos nossos ideais elevados e o compromisso com a infância e o desenvolvimento humano.   

Essa fase vai passar e então nos reorganizaremos, perceberemos que não perdemos conteúdo, mas sim ganhamos em humanidade. Vivemos um momento histórico. Que sejamos capazes de lidar agora de uma forma que nossas crianças se orgulhem de nós depois. 

Professora Glauce Kalish
Jardineira da Escola Livre Areté – São Paulo.

Outono de 2020

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